terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Água, cão, cavalo, cabeça


Água cão, cavalo, cabeça é um livro de pequenas histórias, fragmentos, mistura de narrativas. São como que canções. Por vezes depressivas, outras vezes, trágicas. Raramente alegres.

«No número 18 passam-se coisas. É um bairro pobre, e por isso proibiram as canções tristes, vê como saltam durante as festas.— Um velho de oitenta anos foi morto. Ele caminhava como os velhos: mais ligado ao anterior passo que ao próximo. Tenho força porque não sei, não conheço. Decorar um quarto de criança não é o mesmo que escolher o tipo de caixão para o velho de oitenta anos espancado até à morte por dois rapazes (disseram ontem nas notícias). Encontraram-no no meio do lixo: se fosse uma mulher ou um rapaz, novos, bonitos, seria fácil ver as diferenças do corpo em relação ao espaço: porque era Verão e no calor a pele, no que é jovem, exibe-se.E havia calor, mas sedução não. (Que ridículas certas palavras em certos contextos.) Bateram nele, no velho, como se bate nos velhos, com mais força, pela cobardia dele, a do velho, que nem é novo para se defender.
E havia calor, mas sedução não. (Que ridículas certas palavras em certos contextos.) Bateram nele, no velho, como se bate nos velhos, com mais força, pela cobardia dele, a do velho, que nem é novo para se defender.Mas ninguém viu pernas, nem ombros de cor de corpo: era tudo lixo, de uma cor escura, igual, ligados pelo feio, e no meio o velho com oitenta anos: como é difícil encontrar um velho morto no meio do lixo. Parecia Inverno, naquela casa com o n.o 18, desabitada, com o chão coberto de lixo: guarda-chuvas partidos, roupa rasgada, bocados de objectos, um frigorífico deitado sem porta (vês o que é aquilo: dois braços do velho morto), jornais, muito jornais. Puxaram-no pelos braços e o corpo estava ali todo, debaixo do lixo. O velho de oitenta anos.
— Se o filho dele descobre quem fez isto — alguém disse. "Não busques na erva muda, Busca a erva muda." Um poeta nórdico — Bo Carpelan — escreveu estes dois versos e eu assinalei-os com o meu lápis-encontrador-de-belezas, assinalei-os ainda no ano 2000, 27 de Novembro de 2000. Com o lápis assinalei-os, a substituir o cartaz que é costume colocar-se em sítios públicos: atenção!, aqui há algo para se olhar duas vezes (pelo menos). A fisiologia é neutra porque é possível que seis homens busquem o corpo de um velho de oitenta anos que desapareceu de casa, que o procurem no meio de uma lixeira e que passem mesmo ao lado de uma das suas mãos de cadáver ou perna, e entre essa fisiologia de perna morta e a fisiologia de um metal velho poucas diferenças existem».

Excerto de "a mulher" de Água, cão, cavalo, cabeça, Caminho, 2006, 94 págs.